domingo, 2 de novembro de 2008

Uma estética nascida no entre: ativando novas sensibilidades no corpo – terapeuta.

Busca-se pensar estratégias que lancem em um estado de jogo a clínica. Estado este em que o clínico esteja comprometido com a invenção de dispositivos que afirmem a vida em sua potência de variação e autopoiese. E neste sentido, investigue e crie operações clínicas que produzam fissuras, aberturas, rupturas, composições que liberem a vida daquilo que a impede de se reinventar continuamente.
“A palavra jogo remete, no dicionário, a situações e ações que envolvam regras previamente estabelecidas, que definam perdas ou ganhos. No entanto, a palavra jogar nos abre outros rumos aparecendo como entregar-se ao, aventurar ou arriscar ao jogo, manejar com destreza ou habilmente, pôr em risco, arremessar, atirar, combinar, brincar, oscilar, lançar-se, precipitar-se, dentre outros.[1] Estado é definido por modo de ser ou estar. Estado de jogar, então, seria um modo de pôr-se em risco, de lançar-se a, aventurar-se, brincar...
Jogar para resistir às forças que nos imponham formas prontas de vida, brincar para viver instaurando mundos, novos modos de ser e de estar. A brincadeira (...) passagem entre mundos e entre tempos.[2]
Escolhemos aqui estado de jogo como uma noção que agrega em si o brincar e o jogar, como dois movimentos de uma coisa só, simultâneos e que, então, gostaríamos que contemplasse pelo menos dois importantes vetores: Zoé e Bio. Como nos propõe Rolnik: Zoé (...) a vida enquanto simples fato de viver: dimensão da utilidade, do hábito, indispensável para que se possa integrar a uma comunidade e situar-se em seu mapa vigente, sem o que uma vida se inviabiliza. (...) Bio (...) a vida enquanto potência de variação de formas de viver: dimensão da criação, indispensável para que a vida encontre canais de expressão para seus movimentos e não sucumba em pontos de estrangulamento que a debilitam e empobrecem.[3]
Assim, paradoxal, o território do jogo parece tecer-se por entre as regras e os acasos. Lançarmo-nos ao jogar, significa também, afirmar o acaso em vez de recortar, de probabilizar ou de mutilá-lo.[4] Desta forma, o jogar se definiria por composições, por agenciamentos. Fazendo insistir um modo, definindo singularidades. É por intermédio de cada frágil combinação (...) uma potência de vida que se afirma, com uma força, uma obstinação, uma perseverança no ser sem igual.[5]
Trata-se, aqui, de afirmar um estado de jogo, condição em que se está à altura do que acontece. Imerso nas conexões de forças engendradas nos acontecimentos, podendo sustentar a fragilidade das composições a cada vez. Mas um estado sempre outro. É condição, mas não tem nem antes e nem depois, desenha-se no acontecimento. Diz Beckett: Não somos mais nós mesmos, nessas condições, e é penoso não ser mais você mesmo, ainda mais penoso do que sê-lo, apesar do que dizem. Pois quando o somos, sabemos o que temos que fazer para sê-lo menos, ao passo que quando não o somos mais somos qualquer um, não há mais como nos apagar.[6]
(Angeli, Andréa A.C. Respiros – por um estado de jogo entre o teatro e a clínica. Mestrado em psicologia clínica. PUC-SP,2008)





[1] Holanda, Aurélio B. Dicionário Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Folha de São Paulo, 1998, p.377.
[2] Safra, G. “Desvelando a Memória do Humano” Edições Sobornost: São Paulo, 2006. Capítulo: O brincar.
[3] Rolnik, S. Os mapas movediços de Öyvind Fahlström. In: Öyvind Fahlström. Another Space for Painting, MacBa, Actar, 2000, p.333-341. Catálogo da retrospectiva da obra de Öyvind Fahlström: Museu d’Art Contemporani de Barcelona (Barcelona, Espanha, 2001), Centro Studi sull’arte Fondazione di San Micheletto (Lucca, Itália, 2001); Massachusetts Museum of Contemporary Art (North Adams, USA, 2001); BALTIC. Center for Contemporary Art (Newcastle, Inglaterra, 2002), Institut d’Art Contemporain (Villeurbanne, França, 2002).
[4] Deleuze & Parnet, Diálogos, p.16.
[5] Idem, ibidem.
[6] Beckett, S. Primeiro Amor. Trad. Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac Naify, 2004 [1970].

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